sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Incineração e vandalismo energético

A possibilidade de construir duas incineradoras nos Açores para queimar os resíduos sólidos urbanos (RSU) continua a alimentar as melhores fantasias dalguns dos nossos mais eminentes governantes. Na sua imaginação, os resíduos urbanos são exactamente iguais aos papéis onde estão escritas as suas promessas eleitorais: atiram-se ao fogo e desaparecem por inteiro, como por arte de magia, sem deixar rasto. E ainda proporcionam algum calorzinho no qual poder aquecer-se, ou mesmo produzir alguma energia eléctrica.

Mas infelizmente o lixo não arde como o papel. Na realidade, arde muito dificilmente. Para que arda é preciso conseguir atingir primeiro uma certa temperatura, o que só pode ser conseguido acrescentando algum tipo de combustível. É isto precisamente o que explica o “Estudo prévio” elaborado para a incineradora que poderá ser construída em São Miguel (e denominada, de forma algo pretensiosa, como Ecoparque da Ilha de São Miguel). Assim, este estudo revela que aquilo que vai entrar nas caldeiras da incineradora são vários elementos: resíduos sólidos urbanos, refugos provenientes da estação de triagem, resíduos industriais banais provenientes do comércio e da indústria, e biomassa florestal.

Ora, o mais surpreendente é que os resíduos sólidos urbanos, mais os refugos, representam entre metade e dois terços (57-61%) do total da matéria que é queimada. E a biomassa representa perto de um terço (23-30%). O que significa, portanto, que um terço daquilo que é queimado na incineradora é matéria reciclável. Ou melhor, matéria que deixa de ser reciclada.

Mas mesmo dentro dos outros dois terços, dentro dos resíduos sólidos urbanos, há também uma parte importante de matéria orgânica. E esta matéria orgânica é, mais uma vez, matéria reciclável que ao ser queimada deixa de ser reciclada. Bons exemplos de como poderia ser reciclada existem até dentro da própria ilha de São Miguel, como no caso da central de “vermi-compostagem” do Nordeste.

Mas não é só matéria reciclável a servir de combustível. É também fuelóleo. Este combustível fóssil, evidentemente importado pela região, é utilizado nas operações de arranque e paragem da instalação e ainda durante o seu normal funcionamento para garantir uma temperatura adequada na caldeira. Se atirar gasolina a um ecoponto e pegar-lhe fogo é puro vandalismo, o que podemos dizer então das incineradoras?


Porém, as fantasias continuam em relação ao lixo não deixar rasto ao ser queimado. Na combustão do lixo a elevadas temperaturas são criados toda uma série de compostos químicos extremamente perigosos para a saúde. Alguns deles podem ser qualificados como super-venenos, como é o caso das dioxinas e furanos, que vão acumulando-se no organismo e acabam por produzir graves doenças como o cancro ou doenças do sistema imunitário. Não menos perigosos são outros compostos e metais pesados que são igualmente produzidos: dióxido de enxofre, cloreto de hidrogénio, hidróxido de flúor, óxidos de azoto, mercúrio, crómio, cádmio, arsénio, etc. Todos estes compostos criados na incineração ficam nas cinzas da caldeira ou são libertados para o ar, apesar de passarem previamente por uns sistemas de filtragem que retiram grande parte deles.

Quem faz negócio com a construção destas incineradoras assegura que os compostos tóxicos que emitem para a atmosfera estão dentro dos parâmetros de segurança exigidos a este tipo de instalações. Mas os cidadãos açorianos, sem necessidade de se mostrarem excessivamente ingénuos ou desconfiados, podem fazer uma escolha muito simples: podem decidir se querem que os seus filhos respirem ar puro e sem substâncias tóxicas ou se preferem, pelo contrário, que os seus filhos respirem ar carregado de substâncias cancerígenas, mesmo que invariavelmente por baixo dos teores considerados de risco.

Afinal, são os cidadãos açorianos os que vão pagar, directa ou indirectamente, os 130 milhões de euros que custam as duas incineradoras e são também eles os que devem decidir que tipo de ambiente querem ter e que tipo de ar querem respirar. As alternativas existem, muitas delas cientificamente melhores e muito mais baratas.

Sem comentários: